Opinião

2012 - a propósito dos “resgates” do presidente do governo

Raramente tenho, findo em 2019 o meu mandato na Assembleia da República, escrito ou proferido intervenções públicas sobre a atualidade política regional. Este texto justifica-se apenas por afirmações do atual presidente do governo, que vi reproduzidas em alguns órgãos de comunicação social, sobre um pretenso “resgate financeiro” que teria sido feito à Região em 2012 - quando eu presidia ao nosso governo.

Beneficiando do espaço que me é permitido no Correio dos Açores, coloquemos, então, o assunto na sua devida forma, que não é aquela que, certamente por desconhecimento, Bolieiro resolveu invocar a despropósito.

Em 2011 e 2012 repercutiram-se nos Açores os efeitos regressivos, na sequência da crise do subprime e do ambiente de alarme económico e social que se viveu nesse período à escala europeia.

Todos os dias, por esse mundo fora, ouviam-se notícias de uma degradação constante, de falências em cadeia de empresas e da extinção abrupta de empregos, de milhões de desempregados, de economias destroçadas, de famílias sem apoios ou esperanças e, mais grave ainda, de Regiões e Estados completamente incapacitados e sem meios para agir e socorrer.

Não houve, ao contrário do que aconteceu com a crise da pandemia declarada em Portugal em 2020, uma resposta europeia coordenada de apoio à recuperação económica e financeira e à depressão social, penalizando-se, então, sobretudo, os países mais debilitados ou frágeis como o nosso, que ficaram expostos quer a programas severos de reajustamento de origem externa, designadamente do FMI quer aos efeitos da falta do financiamento bancário às economias privada e empresarial, com enormes perdas.

Em vez dos apoios vultuosos e efetivos para fazer face às sequelas económicas e sociais da pandemia – apoios que estão agora ao dispor em Portugal e nos Açores com o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) -, a corrida ao investimento salvífico da crise significou, naquela altura e em muitos casos, um sobre-endividamento público e privado, com as consequências que conhecemos no caso português e não só. Muitos países somaram crise à crise.

Em todo o lado – e não só no nosso País – foram tomadas nesses anos medidas de fortíssima severidade, que abalaram estilos de vida consolidados e estremeceram valores tradicionais, como, por exemplo, alterações na idade de aposentação, despedimentos em massa de funcionários públicos, extinção de vários outros benefícios sociais como subsídios de paternidade e apoios habitacionais, reduções salariais e das pensões, eliminação do salário mínimo e de subsídios de férias e de Natal, e por aí em diante. Alguns governos mais à direita pareciam, todavia, “na sua praia”.

Apesar de tudo isso, a par da melhor saúde das finanças públicas açorianas, os efeitos dessa crise nos Açores tiveram consequências menos negativas face às verificadas no conjunto do País, como se pode comprovar estatisticamente em todos os domínios. Também por isso, embora os Açores tenham sido fortemente atingidos por medidas restritivas múltiplas de aplicação nacional, não houve necessidade de um programa de austeridade específico para os Açores como aconteceu a nível nacional e na Madeira.

O memorando, acordado nessa altura entre o governo central e o governo açoriano, pouco ou nada acrescentou à política regional que tínhamos em curso. Esse memorando, saliente-se, decorreu do sufoco financeiro do País e da impossibilidade de Portugal recorrer a financiamento bancário também por consequência da exigência de rácios de crédito concedido face a depósitos, imposta aos bancos na sequência crise internacional.

Ou seja, os mercados financeiros estavam fechados ao País e essa situação nada tinha a ver com os Açores. Nesse contexto, e dado que a Região teria de se refinanciar, obteve-se esse financiamento da República no valor de135 milhões. Como a Região, segundo a troika, nada tinha contribuído para essa situação, o mínimo exigível era que do empréstimo que a troika havia feito à República (72 mil milhões de Euros) uma pequeníssima parte (135 milhões) fosse depois alocada por empréstimo aos Açores apenas para refinanciamento dos empréstimos bancários, num ano em que Portugal, e não especificamente os Açores, não tinham acesso ao sistema financeiro.

Atente-se, também, que não foram 185 milhões, como vi referido pelo presidente do Governo Regional, mas sim 135 milhões correspondentes apenas aos empréstimos a amortizar em 2012; os outros 50 milhões eram para outras eventuais necessidades que a Região nunca usou. Ou seja, não precisámos de apoio da República que não fosse para suprir a situação de o País ter ficado sem acesso ao financiamento e aos mercados financeiros bloqueando o nosso acesso.

Por isso e para isso foi assinado o memorando com a República, onde constavam matérias que eram de aplicação legal a todo o território nacional com ou sem esse memorando. Um exemplo, entre outros, de uma obrigação nacional imposta pela troika, que Bolieiro atribuiu indevidamente a uma norma destinada aos Açores, foi a de que “não serão lançadas novas parcerias público-privadas” exceto as que estariam em curso.

Os Açores foram, na verdade, a única Região do País que não teve um programa de ajustamento orçamental imposto pela troika, nem nenhuma intervenção da troika e foi a única que foi dispensada das avaliações intercalares da troika. Desse memorando não resultou específica ou diretamente qualquer restrição relevante para a nossa política orçamental. De resto, adotámos medidas para anular e compensar os cortes dos vencimentos dos funcionários públicos regionais decididos a nível nacional, bem como continuámos a contratar funcionários públicos, a manter o investimento e várias políticas compensatórias para atenuar os efeitos gravosos de medidas do governo central.

Porém, logo no acordo inicial de ajustamento de Portugal com a troika, foi reduzida para o limite de 20% a margem de diferencial que havia nos impostos entre a taxa praticada nos Açores e no Continente, quando antes era de menos 30%. A redução do diferencial para 20% não teve nada diretamente a ver com Açores. A Madeira viu, posteriormente, completamente eliminado esse diferencial no IRS e IRC no seu programa específico de ajustamento e subida a taxa do IVA, tal como transferida para Lisboa a gestão da sua divida pública.

Na verdade, a situação financeira da nossa Região, nesse ano em que foi assinado esse memorando com a República, não inspirava cuidados. Isso mesmo foi dito pela troika que avaliava a situação em Portugal e com a qual, em várias ocasiões, o Governo Regional dos Açores reuniu representado pelo seu vice-presidente.

Apesar da situação de dificuldade que o PS tinha herdado quando assumiu o governo em 1996, 16 anos antes – uma situação de bloqueio que, à época, atingia não apenas o setor público administrativo e empresarial como o setor privado -, a situação apurada em 2012 era incomparavelmente positiva. Tínhamos resolvido esses gravíssimos constrangimentos com novas políticas associadas à aprovação da Lei de Finanças das Regiões Autónomas e com a assunção pelo Estado da maior parte da nossa dívida pública. Durante esse período houve anos em que nem recorremos a financiamentos extraordinários. Produziram-se benefícios semelhantes para a Região Autónoma da Madeira, mas a diferença que importa relevar é que esta seguiu um caminho que, em 2012, fez com que tivesse uma dívida pública já muito superior à dos Açores. Se compararmos a situação dos Açores com o que se passava no total do nosso País ou na Região Autónoma da Madeira, verificamos que em 2012 a percentagem da dívida no PIB era de 126,2% no total do País e 107,9% na Madeira, enquanto os Açores apresentavam um rácio (32,1%) que era metade da referência da U.E. para este Indicador (60%).

Não faltaram, então, os elogios à governação financeira dos Açores vindos quer do interior da opinião especializada nacional quer de meios europeus. E, como disse, até da Troika! E bem!

Outra coisa bem diferente é a grave situação atual.

Em 2024, o Governo Regional recorre à República como única alternativa para empréstimo, apesar de todos os mercados financeiros estarem disponíveis. E em 2025 recorre novamente à República, como única forma para conseguir garantir financiamento para pagar compromissos. Em 2012, os Açores só beneficiaram de uma ínfima parte do financiamento que foi atribuído ao País, exclusivamente devido ao descalabro da situação nacional e na Madeira e ao bloqueamento nacional do financiamento nos mercados.

Concluindo, em 2012 houve “resgate” a Portugal, não aos Açores e, menos ainda, por causa dos Açores.